quinta-feira, 7 de agosto de 2014

ELA (de Spike Jonze)

Sempre sintonizado com questões atuais, Jonze faz de seu novo filme uma fábula moderna sobre relacionamentos.

gênero drama cumpre um papel dos mais nobres dentro do que o Cinema, como forma de expressão, tem a nos oferecer: identificação. Filmes como este Ela oferecem uma ilustração, com começo, meio e fim, dos mesmos dramas que vivemos aqui fora no mundo real, e nos convida a reavaliarmos o modo como lidamos com eles, através das reações dos personagens. Podemos estar assistindo a um enredo de ficção, mas as emoções que ele nos faz sentir são inquestionavelmente reais. Ou não?


Esse é apenas um dos questionamentos que Spike Jonze nos propõe nessa brilhante fábula moderna sobre do que são feitos os relacionamentos e como e porquê eles terminam. Esse dilema sobre a natureza dos sentimentos já surge no início do filme, apresentando Theodore, um escritor recém divorciado, num monólogo em que parece estar revelando seus sentimentos a alguém. No entanto, logo descobrimos que ele está é ditando ao computador uma carta de mais um cliente seu, a ser endereçada à namorada/esposa deste. Theodore não está envolvido na relação, apenas trabalha em uma empresa especializada em traduzir os sentimentos de uma pessoa por outra, o que nos deixa algumas perguntas: Será que quando a mulher de seu cliente ler essa carta, os sentimentos despertados serão reais? Será que o que Theodore escreveu, conhecendo o relacionamento do casal o suficiente, pode ser considerado verdadeiro? (Tempo para pensar…). Se você já assistiu a um filme como A culpa é das estrelas, por exemplo, dificilmente poderá responder que não.

Trata-se de uma sacada tão genial do jovem diretor Jonze, que dialoga com a própria capacidade de o cinema despertar emoções, tal como falei no primeiro parágrafo. Não importa que o objeto tenha sido fabricado, os sentimentos despertados por ele são reais.

Da mesma forma, a história de um homem, o Theodore do início, que se apaixona por um sistema de computador que fala, aprende e reage como um ser humano, pode parecer fantasiosa, mas são os sentimentos envolvidos que importam. Você só precisa “fazer de conta” que aquilo poderia acontecer para, em troca, entender o que o filme quer nos dizer: um relacionamento não depende de um corpo como o da atriz Scarlet Johansson (dona da voz por quem Theodore se apaixona), mas de se entender e aceitar o outro. Parece óbvio quando se diz, mas em tempos onde o culto ao corpo, o consumismo e o individualismo tem se tornado quase que uma religião, é preciso nos questionarmos para voltarmos à realidade - daí a importância de filmes como Ela, nos fazer questionar. 





Mesmo sendo difícil imaginar um romance como esse acontecendo de verdade, basta pensarmos nos, há muito, corriqueiros casos de namoros virtuais, que duram anos (e até terminam antes mesmo de o casal se encontrar), para percebermos que o filme está levantando questionamentos bastante contemporâneos. A internet veio com a promessa de nos aproximar, e aperfeiçoar nossa capacidade de comunicação, mas paradoxalmente, estamos reféns de uma carência afetiva tão grande que a rede não passa de um lugar onde buscamos alguma conexão com anônimos tão perdidos quanto nós mesmos. Diante dessa desoladora realidade, fica difícil negar a validade do relacionamento de Theodore com aquela voz que o entende, que aceita suas falhas e exalta suas virtudes, que o diverte e lhe faz companhia. Aliás, é justamente por Samantha (nome que ela mesma se dá) não ter um corpo, que é possível compreender que são essas capacidades que definem uma boa companhia, e por consequência, um bom relacionamento. Talvez por isso os amigos de Theodore ao longo do filme achem tão natural o inusitado namoro, provavelmente mais sólido do que seria com a garota com quem ele sai em certo momento, tão carente quanto ele, mas cheia de exigências já no primeiro encontro. E certamente mais real do que com a anônima do chat, com quem ele pratica um sexo virtual dos mais impessoais e constrangedores. Por que essas experiências vazias com pessoas “reais" seriam mais válidas do que com Samantha? Essa é a questão que a ex-esposa de Theodore, numa cena impossível de não se identificar, parece ignorar, e que o filme nos convida a responder. 

Além de nos fazer pensar sobre todos esses assuntos, o filme ainda narra sua história com um dos roteiros mais inteligentes dos últimos tempos, não por acaso, vencedor do Oscar deste ano. Ignorando as diferentes existências, virtual e física do casal, Jonze foca nas diferenças de personalidade de ambos como o fator da união e ao mesmo tempo do rompimento, como geralmente acontece em qualquer relacionamento. Impotente ao ver Samantha descobrindo sua liberdade em se comunicar com centenas de pessoas ao mesmo tempo e com outras personalidades iguais a ela, Theodore, sempre deprimido e confuso, logo percebe que não terá muitas chances, mas acaba descobrindo algo importante: muito do que pensamos compreender do nosso par, talvez não passe de projeções que fizemos sobre o que gostaríamos que ele fosse, e acabamos atribuindo-o culpas que na verdade são nossas. Um aprendizado duro e sem atalhos, mas necessário.

Agora, uma curiosidade para nos lembrar que bons filmes nunca são apenas filmes. Spike Jonze, um diretor obcecado pelo trabalho como demonstra o incrível design deste filme, era casado com Sophia Coppola, também diretora, que na época do rompimento dirigia Encontros e Desencontros, sobre uma mulher (Scarlet Johansson de novo!!), negligenciada pelo marido workaholic, em busca de uma conexão intelectual que a fizesse se sentir uma pessoa novamente. Assistindo os dois filmes em sequência, e sabendo que seus autores eram casados, não é difícil imaginar os personagens como  alter ego deles, e os filmes em si como mensagens de um para o outro sobre o que deu errado em seus próprios relacionamentos. Fantástico!

E já que mencionei a atriz novamente, a mesma pode ser vista em outro excelente filme recente, Sob a pele, em que, curiosamente, faz o papel inverso sobre o mesmo tema: sem falar quase o filme inteiro, a loira é uma alienígena (escondida “sob a pele” de Scarlet Johansson, percebe? :-) que só precisa insinuar seu belo corpo e-bota-belo-nisso, para atrair os homens que escolhe, cegados para a sua verdadeira e horripilante natureza. Três filmes diferentes entre si, oferecendo diferentes pontos de vista sobre os mesmos temas. Queria dicas? Melhor impossível.